Publicada Quarta-Feira, 19/11/2014

Artigo: Trabalhar muito não faz bem
Armas de fogo não são boas nem ruins - são usadas para o bem ou para o mal. O mesmo ocorre com a tecnologia, ela pode nos libertar ou nos escravizar.

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Acordar e poder decidir se sai ou não de casa para trabalhar. Folgar 48 horas e ainda ter um terceiro (talvez até um quarto) dia de descanso. Tirar férias quando desejar e pelo tempo que quiser. A expectativa sobre uma jornada de trabalho mais flexível é cada vez maior. Em tese, a sociedade contemporânea poderia se libertar das amarras de um cotidiano profissional rigoroso. É a variação moderna do lema "trabalhar menos para viver mais". Essa ideia transita pela imaginação humana desde o surgimento do próprio conceito de trabalho e cresceu progressivamente com o advento da tecnologia e da promessa que essa evolução resultaria, com ajuda das máquinas, numa redução da jornada.

Armas de fogo não são boas nem ruins - são usadas para o bem ou para o mal. O mesmo ocorre com a tecnologia, ela pode nos libertar ou nos escravizar.(Nigel Marsh, especialista em equilíbrio entre vida pessoal e trabalho)

Mas a tecnologia não nos ajudou a trabalhar menos, pelo menos em curto prazo - "curto" em termos históricos, é claro. A última grande mudança na estrutura da jornada de trabalho veio com a Revolução Industrial a partir do século 18, quando a mecanização mudou o mundo. Depois disso houve apenas ajustes, mas a ideia de 8 horas diárias de trabalho permanece a mesma até hoje, ainda que o futuro continue a parecer brilhante e esperançoso. A questão a se resolver para que esse novo momento chegue envolve três eixos; o trabalhador, as empresas e o governo.

"Precisamos repactuar a duração da jornada socialmente, algo que os europeus fazem mais; colocar numa mesa empresários, trabalhadores e governo para construir um pacto", opina o professor doutor Mário César Ferreira, do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília. "Porque reduzir é preciso. Precisamos construir um cenário em que todos ganhem; o Brasil, a sociedade, o setor produtivo e os trabalhadores", completa.
                             

Para Ferreira, a maior resistência vem das empresas, que em sua maioria não estão dispostas a rever conceitos "antiquados" de gestão de pessoas. "É perfeitamente possível, mas infelizmente o setor empresarial ainda tem uma mentalidade muito atrasada. Não aceita conversar, discutir. Essa é uma questão fundamental porque se não mexermos nessa variável continuaremos com esses indicadores de acidentes de trabalho, de saúde, que estão aí", explica.

Após a Revolução Industrial, as leis de direitos trabalhistas foram estabelecidas para garantir que o indivíduo não acabasse vítima do sistema - conceito que continua a florescer em partes da Europa, mas foi flexibilizada em países como Estados Unidos e Japão. No Brasil, desde a Constituição Federal de 1988, o limite passou a ser 44 horas semanais. Apesar de décadas de reivindicações sindicais por mais uma diminuição, desta vez para 40 horas/semana, a situação continua a mesma. Por aqui, o trabalhador é protegido por muitas leis que controlam o pagamento de hora extra e outros benefícios, mas a estrutura temporal dentro da qual cada um deve desempenhar sua função continua rígida.

"O tempo não foi feito para nos submetermos a ele", reclama Luiz Edmundo Rosa, diretor de educação da Associação Brasileira de Recursos Humanos. "Nós temos de viver o tempo, criar pessoas com essa visão moderna de que você é o mestre do seu tempo", completa.

"Acredito que o governo e as empresas podem ter um grande papel nessa ajuda. Porém é preciso evitar o erro de dar sua responsabilidade pessoal a eles", afirma Nigel Marsh, especialista no equilíbrio entre vida e trabalho e autor de livros como "Overworked and Underlaid" ("Trabalhando Demais, Fazendo Sexo de Menos", em tradução livre). "Eles não controlam a sua vida. Você controla. Então, a ajuda governamental e das empresas é necessária, mas não é o suficiente", completa Marsh.

Nós temos de viver o tempo, criar pessoas com essa visão moderna de que você é o mestre do seu tempo
Luiz Edmundo Rosa, diretor de educação da Associação Brasileira de Recursos Humanos

Trabalhar menos... para quê?

A questão é que o trabalho é uma peça essencial na vida de qualquer pessoa adulta - e não só como provedor de salário. Ele funciona também como estruturador psíquico, algo que está fundamentalmente ligado à vida de cada indivíduo. "Não é à toa que, quando pessoas se encontram pela primeira vez, as primeiras perguntas que aparecem são 'o que você faz?' e 'onde você trabalha?' ", lembra Ferreira. ".O trabalho, no limiar do século nas sociedades ocidentais, virou sinônimo de emprego e salário. E quem não tem emprego e salário não tem cidadania", explica.

Então, se o trabalho tem essa importância toda, por que deveríamos trabalhar menos? Por que queremos trabalhar menos? Os argumentos a favor de uma jornada de trabalho mais curta, ou pelo menos mais flexível, são muitos, sendo o crescimento da produtividade, o aumento da criatividade e a melhoria na saúde e redução do estresse dos funcionários os mais mencionados. Outros não tão óbvios, entretanto, também estão sendo estudados.

"Um dia de trabalho mais curto significa que as mulheres que só podem trabalhar meio-período passariam a ter trabalhos de período integral", argumenta Mats Pilhem, vice-prefeito de Gotemburgo, na Suécia. A cidade está testando a implementação de uma jornada de 6 horas, mantendo nos serviços públicos os salários de quando se trabalhava por 8 horas. "Também é uma questão feminista. Esta reforma dá mais tempo livre para todos os trabalhadores, o que cria uma distribuição igualitária de trabalho pago e voluntário", afirma Pilhem.

Acho que é possível termos uma motivação maior para trabalhar e para servir a sociedade como um todo e, ainda assim, darmos valor a outras coisas na vida
Mats Pilhem, vice-prefeito de Gotemburgo

Fonte: Uol