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Negociação coletiva deixou de ser um assunto restrito aos
especialistas para entrar de vez no dia a dia das empresas, dos sindicatos e
até dos trabalhadores que nunca pisaram em um fórum. Depois da reforma
trabalhista e das decisões mais recentes dos tribunais superiores,
especialmente do Tribunal Superior do Trabalho, a pergunta que todo mundo faz é
bem simples: afinal de contas, até onde a negociação coletiva pode ir? Dá para
reduzir direitos? Dá para flexibilizar jornada, adicionais, descansos? Ou
existe um limite que não pode ser ultrapassado de jeito nenhum?
Para responder, é útil pensar a negociação coletiva como um
“campo cercado”. Dentro desse terreno há bastante espaço para criatividade,
ajustes setoriais, troca de concessões e soluções sob medida para cada
categoria. Mas as cercas existem, e o TST tem passado os últimos anos
justamente desenhando onde estão esses limites, à luz da Constituição, da
legislação e da orientação do Supremo Tribunal Federal, que reforçou a ideia de
que, em várias situações, o negociado pode prevalecer sobre o legislado, desde
que não se mexa em direitos considerados intocáveis. ?
O primeiro ponto é entender que a Constituição trabalha com
a ideia de um piso de proteção. Existem direitos que formam um “chão” mínimo
para todos os trabalhadores, como proteção da saúde, da segurança, da
dignidade, da remuneração básica e do descanso. A negociação coletiva pode
construir um andar diferente em cima desse piso, mudar a planta do apartamento,
repartir os cômodos de outro jeito, mas não pode cavar abaixo desse chão. O TST
vem aplicando essa lógica ao examinar acordos e convenções: se a cláusula mexe
em algo que a Constituição coloca como núcleo essencial de proteção, a
tendência é considerá-la inválida, ainda que tenha sido aprovada em assembleia
e assinada por sindicato representativo. ?
É aí que entra a distinção, trabalhada hoje de forma bem
clara na jurisprudência, entre direitos “negociáveis” e direitos “não
negociáveis”. De um lado, há um espaço de flexibilidade para ajustar, por
exemplo, modelos de jornada, sistemas de compensação de horas, regras de
participação nos lucros, arranjos de banco de horas, formas de controle de
ponto e até a forma de pagamento de algumas parcelas. Nessas matérias, o TST
tem reconhecido que a negociação coletiva pode limitar ou afastar regras da
lei, desde que se mantenha um patamar de proteção razoável e que o trabalhador
não seja reduzido a uma posição de vulnerabilidade extrema. ?
Por outro lado, há temas que o TST vem tratando como
verdadeiro “coração” do direito do trabalho, especialmente quando envolvem
saúde, higiene, segurança e riscos à integridade física. Nesses casos, a
negociação deixa de ser um instrumento de flexibilidade para se tornar um
possível veículo de retrocesso, e os tribunais acendem a luz vermelha. Um
exemplo importante são as discussões sobre prorrogação de jornada em ambientes
insalubres, redução de pausas fundamentais para descanso ou supressão genérica
de férias e
intervalos. Em vários julgados recentes, o TST tem deixado claro que, quando a
cláusula coletiva expõe o trabalhador a riscos relevantes, ela ultrapassa a
fronteira do que é permitido negociar e deve ser considerada inválida, ainda
que conte com apoio sindical e contrapartidas econômicas. ?
A própria forma como o TST lê a ideia de prevalência do
negociado sobre o legislado mostra essa preocupação com limites. Em decisões
posteriores ao julgamento do tema de repercussão geral pelo Supremo, a corte
trabalhista passou a adotar um raciocínio em duas etapas. Primeiro, verifica se
o direito tratado na cláusula coletiva está ou não protegido diretamente pela
Constituição em seu núcleo essencial. Se estiver, a negociação não pode
eliminá-lo nem esvaziá-lo de modo substancial. Se não estiver, abre-se um
espaço maior para a autonomia coletiva, desde que se respeite o patamar mínimo
civilizatório e que a negociação tenha sido real, transparente e com
participação efetiva da categoria. ?
Isso nos leva a outro limite importante: a qualidade da
própria negociação. O TST tem olhado com cada vez mais atenção para o contexto
em que a norma coletiva foi produzida. Não basta ter um papel assinado com
carimbo do sindicato. Os ministros examinam se houve assembleia, se a categoria
foi informada, se houve debate real, se a cláusula faz sentido dentro de um
conjunto de concessões recíprocas ou se foi apenas uma renúncia isolada, sem
contrapartida. Quando a negociação aparece descolada da realidade da categoria,
como uma espécie de “pacote pronto” empurrado de cima para baixo, cresce o
risco de a cláusula ser considerada abusiva e, portanto, inválida. ?
Em paralelo, o TST tem se preocupado com cláusulas que
transformam a negociação coletiva em instrumento de distorção econômica, e não
de proteção ou equilíbrio. Estão em debate, por exemplo, cláusulas que obrigam
empresas a contratar determinados benefícios com fornecedores específicos,
vinculam o acesso a serviços a prestadores únicos ou criam taxas compulsórias
para empresas que nem sequer participaram da negociação. Essas situações estão
chegando ao TST em incidentes com efeito vinculante, justamente para que a
corte defina se a negociação pode ser usada para restringir a livre iniciativa
e a concorrência, e até onde vai a liberdade sindical quando ela se confunde
com mecanismos de cartelização. ?
Outro campo em que os limites da negociação coletiva estão
sendo desenhados, quase em tempo real, é o das cláusulas que afastam o controle
de jornada ou que declaram determinados trabalhadores como “externos” ou “de
confiança” sem que isso reflita a realidade. A discussão não é nova, mas ganhou
contornos diferentes com o reforço da autonomia coletiva e com a multiplicação
de modelos flexíveis de trabalho. O TST vem sinalizando que a simples previsão
em norma coletiva de que um grupo de empregados não estará sujeito a controle
de ponto não basta, se, na prática, há subordinação, metas rígidas, uso
intensivo de sistemas de registro e cobrança diária de resultados. Nesses
casos, a cláusula não é vista como uma adequação legítima, mas como um rótulo
para encobrir uma relação de jornada típica, e o limite da negociação é
novamente alcançado. ?
Vale notar que esse movimento não é só de contenção. Há
também uma clara valorização das negociações bem feitas. Em diversos julgados,
o TST tem reconhecido a validade de cláusulas que ajustam jornada em turnos
ininterruptos de revezamento, criam modelos de compensação de horas mais
adaptados à realidade da empresa ou estruturam programas de participação nos
lucros com critérios objetivos e metas claras. Nesses casos, a corte deixa
claro que não pretende substituir o sindicato na mesa de negociação, mas apenas
garantir que os acordos não ultrapassem as cercas constitucionais nem
sacrifiquem a saúde e a dignidade dos trabalhadores em nome da
flexibilidade. ?
Na prática, tudo isso significa que o espaço para negociar
hoje é, ao mesmo tempo, maior e mais exigente. Maior, porque a jurisprudência
reconhece que muitos direitos previstos em lei podem ser calibrados por acordos
e convenções coletivas, permitindo soluções sob medida para cada setor, empresa
ou categoria. Mais exigente, porque a mesma jurisprudência cobra qualidade do
processo negocial, transparência, coerência das cláusulas dentro do conjunto do
instrumento coletivo e respeito absoluto a um núcleo duro de proteção,
especialmente em matéria de saúde, segurança e dignidade no trabalho.
Para empresas, sindicatos e trabalhadores, a mensagem é
dupla. De um lado, não faz mais sentido tratar a negociação coletiva como mera
repetição da lei ou como simples “carimbo formal” para decisões já tomadas
unilateralmente. Quem entrar na mesa apenas para cumprir tabela tende a
produzir cláusulas frágeis, que serão derrubadas quando questionadas
judicialmente. De outro, também não há espaço para imaginar que a negociação é
um “vale-tudo” em que, com a assinatura do sindicato, qualquer redução de custo
está autorizada. Os limites existem, estão sendo desenhados e reafirmados pelo
TST e vão servir de referência obrigatória para os próximos anos.
Responder à pergunta inicial, portanto, é reconhecer essa
dupla realidade. Os limites da negociação coletiva hoje passam pela combinação
entre autonomia e responsabilidade. Autonomia para construir soluções
específicas, adaptar regras, experimentar modelos diferentes, inclusive com
alguma redução ou modulação de direitos legais em troca de benefícios
concretos. Responsabilidade para não romper o piso constitucional, não colocar
em risco a saúde e a dignidade de quem trabalha, não usar a negociação como instrumento
de fraude ou de distorção econômica. É nesse equilíbrio, e sob a vigilância
atenta da jurisprudência do TST, que a negociação coletiva continuará a ser
peça central no direito do trabalho contemporâneo.